O BRASIL E
SUAS VÁRIAS IDENTIDADES
I. Introdução
Para tentar entender a formação
identitária do povo brasileiro, teremos de passar pelos tradicionais estudos de
Antropologia, Sociologia e História, realizados sobre o tema, como nas vozes de
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do
Brasil, de Marilena Chauí em Mito
Fundador e Sociedade Autoritária, além de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala e de Darcy
Ribeiro em O Povo Brasileiro. Para
realizar e construir uma análise ampla do “ser brasileiro”, e tentar, no
mínimo, levantar algumas hipóteses quanto à construção de uma identidade
brasileira, procurei mesclar grande parte desses estudos, promovendo um diálogo
entre as obras cânones da brasilidade e complementando-as com as minhas
perspectivas quanto ao tema.
Para efeito de conseguir uma boa
compreensão do texto, sistematizei o trabalho, dividindo-o em três partes – Introdução, em que será tratada a
metodologia do trabalho; Aquarela do
Brasil, em que dissertarei sobre a presença das três principais etnias
responsáveis pela construção do povo brasileiro; e O ser brasileiro, em que tentarei levantar algumas hipóteses sobre
a identidade brasileira.
II –
Aquarela do Brasil
A formação do povo brasileiro começa,
obviamente, com a chegada dos portugueses no Brasil no início do século XVI.
Naquele momento, o mundo conhecido era a Europa e parte da Ásia e da África.
Com a “descoberta” (ou achamento no termo da época) do Novo Mundo, o eixo
econômico mudou-se do Mar Mediterrâneo, dominado por italianos desde o fim das
Cruzadas, para o Oceano Atlântico. É indispensável dizer que naquele momento o
capitalismo se encontrava na sua fase comercial e estava ávido por novos
consumidores e por matéria-prima. Sendo assim, o achamento da América foi
fundamental para a expansão mercantil européia.
A
chegada da esquadra portuguesa no Brasil, liderada por Pedro Álvares Cabral,
foi marcada pelas “Visões do Paraíso”. Os navegadores, baseados em fundamentos
míticos, acreditavam que a Oeste do mundo conhecido (Europa), encontrar-se-ia
um Paraíso Terrestre. Com isso, se
constrói a fundação do Brasil: um local onde tudo se planta e tudo se colhe,
lugar em que a população é dócil e a abundância reina. É o chamado mito
fundador, defendido pela filósofa Marilena Chauí.
Para
Darcy Ribeiro (2005), a chegada dos portugueses no litoral brasileiro, provocou
um choque de culturas. Era a civilização portuguesa contra a barbárie indígena.
Para o sociólogo, "Os iberos se lançaram à aventura no além-mar...
desembarcavam sempre desabusados, atentos aos mundos novos, querendo fruí-los,
recriá-los, convertê-los e mesclar-se racialmente com eles...". A expansão
marítima portuguesa, a serviço dos interesses reinóis e da fé cristã, colocava
o povo português, tão louvado por Camões, em posição proeminente no mundo.
De
fato, os portugueses já estavam acostumados em miscigenar-se. Pelo menos nesse
ponto há um diálogo entre Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro. De acordo
com o primeiro, a integração com os negros e índios não se deu com o ideal de
raça superior, aliás, o termo racismo nem existia nos primórdios da
colonização. Ele afirma no seu livro Raízes do Brasil (1970), que não havia
orgulho de raça dos portugueses. Isso é realmente comprovado de diversas
maneiras, principalmente, com os séculos de ocupação islâmica em território
Ibérico, em que o português se acostumou a conviver e miscigenar-se com o “outro”.
Ainda hoje, existem muitos vestígios da cultura muçulmana em Portugal e
Espanha.
Segundo
Holanda, o português enxergava na integração com outros povos, no Brasil o
índio e o negro, uma maneira de amenização social. Nessa passagem, o
historiador dialoga com o “pai da sociologia brasileira”, Gilberto Freyre. Em
seu livro “Casa Grande & Senzala”, Freyre afirma:
“(...) Mas predominando sobre todos os antagonismos, o
mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. É verdade que [esteve]
agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes o
choque ou harmonizando-os, a condição de confraternização e de mobilidade
social peculiares do Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança...”.
Não se sabe até que ponto essa
estratégia de miscigenação pode ser confundida como uma forma de dominação, ou
uma forma mascarada de tal prática. A sociedade brasileira, entre todas da
América, era a que se formava com maior troca de valores culturais. Para
Holanda, o negro na maioria das vezes estava submetido à escravidão ou a cargos
menores, pois na perspectiva dos colonizadores portugueses ele não estava
acostumado a “outros cargos”, como os de burocrata, embora vez por outra fosse
encarregado de tal função através de mérito próprio.
Quanto
ao silvícola, que inicialmente era visto como “dócil”, e mais tarde taxado de
“vadio”. O desinteresse inicial em relação ao índio foi modificado a partir do
momento em que os portugueses descobriram a primeira grande riqueza brasileira,
o pau-brasil.
Mais tarde, porém, não houve adaptação
por parte do índio à nova realidade econômica do português – a empresa
açucareira. A sua cultura de subsistência chocava-se com a cultura de
excedentes do mercantilismo, o que inibiu e afastou o silvícola do trabalho escravo.
Posteriormente, com a chegada do órgão da Contra-Reforma, a Companhia de Jesus,
os jesuítas proibiram os colonizadores de utilizar o índio como escravo ou em
outro tipo de trabalho, reservando para ele um lugar nas missões ou nas
reduções jesuíticas. Pior para o índio, que de uma forma ou de outra, estaria
sujeito a uma aculturação.
Em
relação à miscigenação com o índio, especificamente, Darcy Ribeiro (2005b)
afirma:
“No Brasil a mestiçagem sempre se fez com muita alegria, e se fez desde o
primeiro dia... Imagine a seguinte situação: uns mil índios colocados na praia
e chamando outros: "venham ver, venham ver, tem um trem nunca
visto"... E achavam que viam barcas de Deus, aqueles navios enormes com as
velas enfurnadas... "O que é aquilo que vem?" Eles olhavam,
encantados com aqueles barcos de Deus, do Deus Maíra chegando pelo mar grosso.
Quando chegaram mais perto, se horrorizaram. Deus mandou pra cá seus demônios,
só pode ser. Que gente! Que coisa feia! Porque nunca tinham visto gente barbada
– os portugueses todos barbados, todos feridentos de escorbuto, fétidos, meses
sem banho no mar... Mas os portugueses e outros europeus feiosos assim traziam
uma coisa encantadora: traziam faquinhas, facões, machados, espelhos, miçangas,
mas sobretudo ferramentas. Para o índio passou a ser indispensável ter uma
ferramenta. Se uma tribo tinha uma ferramenta, a tribo do lado fazia uma guerra
pra tomá-la”.]
Ribeiro desenvolve uma tese na qual afirma que
a porta de entrada do branco na cultura indígena foi o chamado “cunhadismo”.
Para ele, foi por meio desse costume que se tornou possível a formação do povo
brasileiro. Foi, inicialmente, por meio da união das índias com os europeus que
nasceu uma gente mestiça que construiu nosso país. Ribeiro afirma:
“No ventre das mulheres indígenas começavam a surgir seres que não eram
indígenas, meninas prenhadas pelos homens brancos – e meninos que sabiam que
não eram índios... que não eram europeus. O europeu não aceitava como igual. O
que era? Era uma gente "ninguém ", era uma gente vazia. O que
significavam eles do ponto de vista étnico ? Eles seriam a matéria com a qual
se faria no futuro os brasileiros”...
Gilberto Freyre
completa:
"A grande presença
índia no Brasil não foi a do macho, foi a da fêmea. Esta foi uma presença
decisiva, a mulher índia tomou-se de amores pelo português, talvez até por
motivos fisiológicos, porque, segundo pude apurar quando escrevi Casa Grande & Senzala, as
sociedades ameríndias ou índias, inclusive a brasileira, eram sociedades que
precisavam de festivais como que orgiásticos para provocar nos homens, nos
machos, desejos sexuais. O que há de acentuar é o grande papel da índia fêmea
na formação brasileira, essa índia fêmea não só através do relacionamento
mencionado sexual, mas através do papel social que ela começou a desempenhar
magnificamente, tornou-se uma figura capital na formação brasileira."
É dessa forma que se dá início à
construção do povo brasileiro. E é da contribuição dessas várias culturas que
se forma o Brasil, um país multicultural. A respeito disso, Ribeiro afirma:
“Há duas contribuições fundamentais nesse encontro: uma mestiçagem do
corpo e uma mestiçagem da cultura. Em nós vivem milhões de índios, índios que
foram esmagados porque a brutalidade do branco com o índio foi terrível.
Esmagados porque o europeu tinha muita doença. Os índios não tinham cárie
dentária, nem gripe, nem tuberculose... Cada enfermidade dessas era uma espécie
de guerra biológica, matou índios em quantidade”...
A mestiçagem no Brasil teve dois
impactos, um irreparável: a dizimação de milhões de índios e negros ocorrida,
principalmente, pela sífilis adquirida dos europeus e de tantas outras doenças
transmitidas pelo colonizador; e outra: as inúmeras manifestações culturais
presentes no país. No primeiro caso, estima-se que no Brasil havia cinco
milhões de índios no início da colonização. Dois séculos depois, eles não
chegavam a dois milhões. E, atualmente, não passam de 400 mil. Em cinco séculos desapareceram para sempre cerca de
800 etnias. Eram povos de diferentes culturas, que ocupavam vastos territórios
de características geográficas distintas. Até hoje a dívida que se tem com as populações e as tradições indígenas
ainda não foi paga. São corriqueiras as imagens de desrespeito ao povo
indígena, como assassinatos de índios, ocupação dos territórios que ainda lhes
restam, entre tantas atrocidades. No entanto, segundo Ribeiro, ainda há muito
dos indígenas em nós, mesmo não sabendo:
“Mas esses índios que morriam sobreviviam naqueles mestiços que nasciam. Somos
nós que carregamos no peito esses índios, os genes deles para reprodução e a
sabedoria deles da mata. O Brasil só é explicável assim, é uma coisa diferente
do mundo”...
Quanto
às manifestações culturais indígenas, ainda hoje, apesar da destruição física,
elas sobrevivem no dia-a-dia de muitos brasileiros. Na comida, por exemplo,
isso ocorre em larga escala. A mandioca
faz parte do cardápio do brasileiro. Ela é cultivada e preparada em todo o país
do mesmo modo que os indígenas ensinaram no começo da colonização. É uma planta
preciosa porque não precisa ser colhida nem estocada. Mantém-se viva na terra
por meses. Outros alimentos que ainda hoje são consumidos pelos brasileiros e
já eram pelos indígenas são: o amendoim, o milho, a batata, entre tantas outras
frutas e legumes.
Para
Gilberto Freyre, ainda hoje guardamos costumes dos indígenas:
"Da cunhã é que nos
veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O
milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de
pente no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a
influência de tão remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria
o sono ou a volúpia do brasileiro."
Além
da cultura indígena, uma outra importante cultura está viva no país, e possui,
muito provavelmente, maior projeção que a analisada acima. A cultura africana é
marcante no Brasil, mesmo depois de séculos de opressão e resistência. O povo
africano chegou ao país para substituir o índio na produção de açúcar. Com
isso, foi implantada no Brasil uma das maiores crueldades patrocinadas pela
humanidade: a escravidão negra. Antes de qualquer coisa, optou-se pelos negros
pois dessa forma abrir-se-ia um extraordinário ramo comercial com vultuosos
lucros capazes de dar inveja a qualquer grande investidor dos dias atuais.
Acrescente-se a isso a justificativa cristã pela escolha dos negros: o fato de
não possuírem alma.
A barbárie do tráfico negreiro foi responsável por retirar da África
milhões de seus filhos, enviando-os à América para uma vida humilhante. A
chamada Diáspora Africana levou para o Novo Mundo cerca de dez milhões de almas,
embora esse número seja incerto, às vezes aumentando ou diminuindo. Só para o
Brasil vieram cerca de quatro milhões, cerca de 40% do contingente desembarcado
em terras americanas.
Diz
Ribeiro sobre o tráfico:
“A grande contribuição da cultura portuguesa aqui foi fazer o engenho de
açúcar... movido por mão-de-obra escrava. Por isso, começaram a trazer milhões
de escravos da África. O negócio maior do mercado mundial era a venda de açúcar
para adoçar a boca do europeu e depois a remessa de ouro. Mas a despesa maior
era comprar escravos. Os europeus sacanas iam à África e faziam grandes
expedições de caça de negros que viviam ali uma vida como a dos índios aqui,
com sua cultura, com sua língua, com seu modo... Metade morria na travessia, na
brutalidade da chegada, de tristeza, mas milhões deles incorporaram-se ao
Brasil”.
É curioso ressaltar que já no embarque
dos escravos, tentou-se homogeneizar as diferentes etnias que compunham o
aglomerado de gentios. Desde cedo os traficantes domesticavam aqueles que mais
tarde seriam denominados simplesmente por africanos ou negros, e mais tarde,
renomeados com nomes portugueses, como Pedros, Joãos, Antônios, Marias, Ritas,
e outros. Durante todo o período da escravidão, também tornou-se normal o
escravo ganhar o sobrenome do seu senhor ou do engenho em que trabalhava.
Essa política teria continuidade dentro
dos engenhos, mas com um caráter diferente. Se a princípio os europeus tentaram
homogeneizar as etnias, posteriormente, ao introduzirem o negro na lavoura,
tentaram agrupar as mais diferentes etnias dentro das fazendas, para que se
dificultassem as revoltas e as agitações.
A
respeito disso, Ribeiro diz:
“E esses negros não podiam falar um com o outro, veja esse desafio como é
tremendo. Eles vinham de povos diferentes. Então, o único modo de um negro
falar com o outro era aprender a língua do capataz, que nunca quis ensinar
português. Milagrosamente, genialmente esses negros aprenderam a falar
português. Quem difundiu o português foi o negro, que se concentrou na área da
costa de produção do açúcar e na área do ouro... Mas preste atenção: com os
negros escravos vinham as molecas de 12 anos, bonitinhas. Uma moleca daquelas
custava o preço de dois ou três escravos de trabalho. E os donos de escravos
queriam muito comprar, e os capatazes também. Comprar uma moleca pra sacanagem.
Mas essas molecas pariam filhos, e quem era o filho? Era como o filho da índia.
Ele não era africano, visivelmente. Ele não era índio. Quem era ele? Ele também
era um "zé ninguém" procurando saber o que era. Ele só encontraria
uma identidade no dia em que se definisse o que é o brasileiro”.
A integração entre a Casa Grande e a
Senzala trouxe, da mesma forma que aconteceu com o índio, pontos positivos e
negativos. Quanto aos primeiros, percebemos hoje em larga escala a presença
maciça da cultura africana no cotidiano brasileiro. Na religião, embora muitos afro-descendentes tivessem
sido convertidos de maneira impositiva ao catolicismo, muitos outros
preservaram suas antigas crenças, chamadas pejorativamente de “magia negra”,
como a umbanda e principalmente o “calundu”, mais conhecido como candomblé, um
dos principais responsáveis pela afirmação da identidade negra no Brasil.
Gêneros musicais também tinham espaço entre os escravos. A viola d´Angola
juntamente com outros instrumentos africanos tocavam o som de raiz. O antigo
lundu, o maxixe, a capoeira, e o jongo são onipresentes desde a época colonial.
Entre os tipos musicais merecem maior destaque: o samba, criado originalmente
por negros baianos e cariocas, e recentemente o mangue-beat e o rap (trazido da
Jamaica e dos EUA) que hoje são elementos de afirmação dos afro-descendentes.
Nos
esportes, a maior participação dos negros é no futebol. Depois do advento do
esporte no Brasil, no fim do século XIX trazido pelos ingleses, a modalidade
esportiva era praticada somente por brancos e ainda pairava o amadorismo. No
entanto, já por volta da década de 1930, quando já existiam as agremiações hoje
conhecidas, o esporte tinha se tornado profissional e apresentado às classes
mais baixas. Coube aos negros dar uma nova cara ao futebol. Com sua ginga,
ritmo, alegria e passos marcantes, os afro-descendentes foram os maiores
responsáveis pelas primeiras conquistas brasileiras e também por um padrão de
jogo que ainda hoje é paradigma de bom futebol. Gilberto Freyre chamou esse
estilo de “mulatismo”:
“Acaba de se definir de maneira inconfundível um estilo
brasileiro de futebol, e esse estilo é uma expressão a mais do nosso mulatismo
ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, curvas ou em músicas, as
técnicas européias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam
elas de jogo ou de arquitetura. Porque é um mulatismo o nosso -
psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato - inimigo do formalismo apolíneo
sendo dionisíaco a seu jeito - o grande feito mulato”.
Ou ainda:
“O mesmo estilo de jogar futebol me parece
contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de
manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade
individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje
a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitus, os
nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e
capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às
vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus
jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo
para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo,
malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil”.
Com o “mulatismo”, o Brasil venceu
brilhantemente as copas de 1958, 1962 e 1970, liderados por Didi, Garrincha,
Pelé e Jairzinho. Nas outras conquistas (1994 e 2002) não foi diferente. Foi
marcante e decisiva a presença de afro-descendentes no elenco brasileiro, como
Romário em 1994 e Ronaldo e Rivaldo em 2002. Em outras modalidades a presença
dos afro-descendentes também é marcante e fundamental para os triunfos do país.
Diz Ribeiro sobre a importância do negro
no Brasil:
“O negro guardou sobretudo sua espiritualidade,
sua religiosidade, seu sentido musical. É nessas áreas que ele dá grandes
contribuições e ajuda o brasileiro a ser um povo singular. Quando chegam na
cidade são capazes de fazer coisas, por exemplo, a cultura do Rio de Janeiro, a
beleza do Carnaval carioca, que é uma criação negra, a maior festa da Terra! A
beleza de Iemanjá, uma mãe de Deus que faz o amor. Você não vai lá pedir que o
marido não bata tanto, que não seja tão filho daquilo, vai pedir um amante
gostoso. Isso é uma coisa fantástica! Um povo que é capaz de inventar uma coisa
destas! Nunca houve depois da Grécia! Isso são os nossos negros, os nossos
mulatos desse país”.
III
– Ser Brasileiro
Depois de dissertar sobre a presença das
três grandes culturas no país, levantarei aqui algumas hipóteses sobre uma
identidade brasileira, apesar das complexidades, amplitudes e incertezas do
tema, procurando mostrar as visões dos estudiosos aqui presentes.
Para Sérgio Buarque de Holanda (1970a),
mesmo havendo as inúmeras manifestações culturais de índios e negros no Brasil,
marcante mesmo é a cultura branca, européia, portuguesa. Diz o historiador,
“Podemos dizer que de lá [Portugal] nos veio a forma atual de nossa cultura; o
resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a nossa forma”. Para ele, os traços mais marcantes do
brasileiro estão relacionados com características dos nossos colonizadores,
como: o individualismo e a não valorização do trabalho manual. Em uma das suas
frases mais marcantes, ele afirma (1970b): “somos ainda hoje uns desterrados em
nossa terra”.
Já para Gilberto Freyre, o brasileiro é
um mosaico, fruto da miscigenação ocorrida no país. Do branco herdamos a
rigidez, a disciplina e o autoritarismo. Do índio a subsistência, a higiene
pessoal, a malandragem. E do negro, a força, a alegria, a ginga, a resistência.
Diz ele sobre a etnia (2001): "Pode-se
juntar à superioridade técnica e de cultura dos negros sua predisposição como
que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas
regiões quentes. Seu gosto pelo sol. Sua energia sempre fresca e nova quando em
contato com a floresta tropical."
Darcy Ribeiro
conclui sobre o ser brasileiro, algo parecido com a perspectiva de Freyre,
apontando no horizonte a glória do povo brasileiro.
“Meu livro mostra por que caminhos e como nós viemos, criando aquilo que
eu chamo de Nova Roma. Roma com boa justificação... Roma por quê? A grande
presença no futuro da romanidade, dos neolatinos é a nossa presença. Isso é o
Brasil, uma Roma melhor porque mestiça, lavada em sangue negro, em sangue
índio, sofrida e tropical. Com as vantagens imensas de um mundo enorme que não
tem inverno e onde tudo é verde e lindo, e a vida é muito mais bela... E é uma
gente que acompanha esse ambiente com uma alegria de viver que não se vê em
outra parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso de sua mestiçagem... Isso é
que me levou muito tempo. Entender como isso se fez... Havia muita bibliografia
sobre aspectos particulares, mas não uma visão de conjunto.”
De acordo com o sociólogo, o brasileiro
é uma pessoa que herdou as principais características das três grandes etnias
que se miscigenaram no país e que ainda está por ver o sucesso do seu país.
Percebe-se, claramente, que as visões de
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro exprimem uma euforia acerca da identidade
brasileira, projetando o país para um lugar de destaque mundial no futuro. O
mesmo não ocorre com Sérgio Buarque de Holanda, que prefere uma análise mais
fria da sociedade.
Uma de suas principais frases, já citada
aqui, “somos uns desterrados em nossa terra”, já fazia sentido na época em que
o livro foi escrito – década de 1930 – e continua fazendo ainda hoje, num
contexto de globalização.
Holanda quis dizer que a substância da
cultura brasileira viera de Portugal e o “resto” foi o que se adaptou bem ou
mal a ela. Atualmente, podemos dizer que aos elementos constituintes do tripé
da cultura brasileira – índios, portugueses e negros – foi adicionada,
principalmente, uma nova influência – a estadunidense.
A invasão cultural estadunidense,
pacífica e muitas vezes invisível, começou a ter destaque durante a Segunda
Guerra Mundial, quando o país despontou como uma das principais potências
mundiais. Nessa época, momento conturbado na história brasileira, devido à
ditadura de Vargas, o governo nacional pendia entre a Alemanha nazista e os
Aliados liderados pela URSS e EUA. O fator principal para a entrada do Brasil
ao lado dos últimos é fundamental para entender o início da forte influência
estadunidense no país. O presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, consegue o
apoio de Vargas por meio de um aporte financeiro substancial para a economia
brasileira, que culminou com a construção da Companhia Siderúrgica Nacional.
A partir desse ponto, e principalmente
pela vitória dos Aliados na 2ª Guerra Mundial, os EUA passaram a exercer uma
influência substancial no mundo inteiro. A América Latina sentiu isso
profundamente. Em 1946, o ex-chanceler Otávio Mangabeira beijou a mão do
presidente Eisenhower, quando de sua visita no país, comprovando toda a
subordinação brasileira aos EUA. A partir daí as portas do mercado brasileiro
estariam “arreganhadas” ao capital yankee.,
embora mesmo antes da 2ª Grande Guerra, a presença cultura estadunidense já era
sensível no Brasil. Muitos brasileiros já liam a Reader´s Digest, comiam enlatados Swift, usavam óculos Ray-Ban
e se barbeavam com Gillette, e,
sempre que possível, diziam ok e bye bye.
Porém, foi durante a década de 1960 que
veio a avalanche cultural. Junto com o apoio político à ditadura militar brasileira,
vieram influências em todos os setores da sociedade. O capital financeiro, por
intermédio da chegada maciça de empresas internacionais no país, foi utilizado
para criar o falso “milagre brasileiro” que trouxe como resultado: mais
concentração de renda, inflação exorbitante, explosão da dívida externa, e,
principalmente, uma década perdida em relação ao desenvolvimento econômico.
Inerente à presença do capital, estava o
“american way of life”, difundido
como paradigma de modernidade e progresso, utilizado como estímulo para o
consumo dos produtos que o simbolizavam. A compra de automóveis nas décadas de
1960 e 1970 no país aumentou significativamente. Empresas de capital
estadunidense desse ramo tiveram grandes lucros, como a GM e a Ford. No entanto,
a invasão de produtos dos EUA não se resumia somente aos carros. Ao longo dos
anos a cultura estadunidense foi ganhando cada vez mais espaço na sociedade
brasileira.
Por meio das histórias em quadrinhos, a
Walt Disney conquistou os brasileiros. O personagem Zé Carioca, que cometeu
várias gafes ao tentar “ser brasileiro”, como afirmar que a capital do país era
Buenos Aires, tentava estereotipar o Brasil e o brasileiro, exibindo o samba,
as praias do país, baianas e baianos, que, aliás, eram representados com a cor
branca, e não por morenas ou negras.
A invasão estadunidense também não podia
deixar de chegar ao cinema e à televisão. A indústria cinematográfica dos EUA
estava presente em praticamente todas as salas de cinema do Brasil, com filmes
de James Stewart, Greta Garbo, Gene Kelly e James Dean. Nos anos 1970 já
estavam presentes no país a 20th Century
Fox, a CBS, a Walt Disney´s Production e os estúdios Hanna Barbera. É importante ressaltar
que em muitos filmes era veiculada a propaganda de que os comunistas sempre
representavam o mal. A visão maniqueísta dos filmes “hollywoodianos” esteve
onipresente nos cinemas do país.
Quanto à televisão brasileira, ela foi
inspirada no modelo de transmissão dos EUA E, por meio dos “enlatados”
transmitidos no Brasil, modos de agir, de vestir, de pensar e de comer eram
transmitidos como verdades absolutas e, é claro, eram copiados por muitos
brasileiros. Séries como: Batman &
Robin, Jeannie é um Gênio, Kojac, Mr
Ed, A Feiticeira, e cartoons
animados como, Mr. Magoo, Manda-Chuva,
Pepelegal, Zé Colméia, entre dezenas de outras séries e programas estavam
na grade de programação. O fenômeno da cultura de massa atingiu em cheio o
nosso país.
Em relação a esses “enlatados” e à
invasão cultural estadunidense, algumas bandas da música brasileira se
revoltaram e protestaram em suas letras, como é o caso da banda Legião Urbana
em sua música “Geração Coca-Cola”.
Canta Renato Russo:
“Quando nascemos fomos programados/ A
receber o que vocês nos empurraram/ Com os enlatados dos USA, de 9 às 18/ Desde
pequenos nós comemos lixo/ Comercial e industrial/ Mas agora chegou a nossa
vez/ Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”.
E em relação à música a situação não foi
diferente. As rádios brasileiras foram tomadas pelas canções de Elvis Presley e
Frank Sinatra. Músicas como Oh, Carol
e Diana marcaram gerações e os bailes
dos anos 50 e 60. O gênero rock e suas variações se espalharam pelo país. E
será nos anos 60 que surgirá no país o fenômeno da jovem-guarda, que refletia,
na verdade, a influência estadunidense por meio do “rock and roll” e do “yeah-yeah-yeah”.
Muitos intelectuais engajados afirmavam que esse “modismo” era totalmente
alienado e era mais uma das manifestações burguesas, pelo fato de não ter
qualquer conteúdo de contestação política.
Em um outro extremo musical, mas também
com a influência estadunidense, surgiu, no final dos anos 50: a bossa nova.
Misturando elementos do jazz com os do samba, esta deixou, definitivamente, sua
contribuição na música brasileira, destacando Tom Jobim, Vinícius de Moraes e
João Gilberto.
Ao longo das décadas o capital
estadunidense, que trazia consigo a cultura do país como vimos acima, alcançava
todos os tipos de consumidor. As crianças brasileiras não podiam ser
esquecidas. Além de mascarem os chicletes, meninos e meninas se divertiam com o
Playmobil, Falcon, Suzy, Barbie e tantos outros. Esses brinquedos sempre vinham
e ainda vêm carregados de estrangeirismos, como: Police, fire, bank, saloon e
tantas outras palavras.
Dos anos 90 aos dias atuais, com o
avanço da globalização, essa “invasão cultural capitalista” tem aumentado
significativamente, com a penetração de novos elementos culturais dos EUA no
país, como no setor alimentício (as redes de “fast-food”), no vestuário, em
novos brinquedos infantis e em vários outros segmentos. Merecem destaque os
estrangeirismos que têm se disseminado amplamente pela sociedade,
principalmente pela difusão da internet e de mais “enlatados” estadunidenses.
Digamos assim: a invasão cultural tem se
renovado para continuar a mesma, ou seja, dominando o mercado brasileiro. É
válido ressaltar que essa “invasão” teve e tem tido seus pontos positivos e
negativos, como em todo intercâmbio econômico e cultural. Todos nós ganhamos e
perdemos com esse fenômeno. O que não pode ocorrer é ela se sobrepor aos
produtos nacionais, à cultura nacional, como, por exemplo, ao folclore
brasileiro, que ganhou mais espaço na televisão brasileira com o programa
“Castelo Rá-tim-bum” da TV Cultura, a refilmagem do seriado “O sítio do
pica-pau amarelo” da TV Globo, e a gravação de novelas e séries de época.
Para finalizar, percebe-se ao longo de
toda esta explanação que a cultura é um processo, e não algo acabado, imóvel.
Sendo assim, é possível afirmar que a identidade brasileira esteve sempre em
transformação. Dessa forma, dificilmente podemos taxá-la como algo definitivo e
imutável. Muito pelo contrário. Somos um país aberto ao estrangeiro desde
Cabral a Lula, e sempre soubemos respeitá-lo e absorvê-lo com irmandade, embora
isso algumas vezes não tenha sido recíproco. Porém, esse contato nos trouxe de
tudo um pouco. Soma-se à identidade brasileira, além dos seus três elementos
formadores, valores e caracteres de todos os rincões do planeta. Dos italianos
aos japoneses. Dos judeus aos muçulmanos. Do guaraná à Coca-Cola, construindo
uma verdadeira miscelânea cultural, que às vezes pendeu para um lado, às vezes,
para outro, dependendo do contexto histórico. Toda essa mistura faz de nós um
povo ímpar, singular na história da humanidade, como disse Darcy Ribeiro. É
possível que a identidade brasileira se encontre nesse ponto, na simbiose, na
constante transformação, sempre de braços abertos àquilo que vem de fora.
PROF. VLADIMIR MIGUEL RODRIGUES
Exercícios
1. UEL 2012 - No debate sobre as cotas para o ingresso
dos negros nas universidades públicas, reapareceram, de forma recorrente,
argumentos favoráveis e contrários à adoção dessa política afirmativa. Os
trechos reproduzidos a seguir constituem exemplos desses argumentos. Em um país
onde a maioria do povo se vê misturada, como combater as desigualdades com base
em uma interpretação do Brasil dividido em “negros” e “brancos”? Depois de
divididos, poderão então lutar entre si por cotas, não pelos direitos
universais, mas por migalhas que sobraram do banquete que continuará sendo
servido à elite. Assim sendo, o foco na renda parece atender mais à questão
racial e não introduzir injustiça horizontal, ou seja, tratamento diferenciado
de iguais.
(Adaptado de: Yvonne Maggie (Antropóloga da UFRJ). O
Estado de São Paulo. 7 mar. 2010. Este artigo de Yvonne Maggie serviu de base
para o seu pronunciamento lido por George Zarur na audiência pública sobre
ações afirmativas convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em março de
2010.)
Desde 1996 me posicionei a favor de ações afirmativas para
negros na sociedade brasileira. Vieram as cotas e as apoiei, como continuo
fazendo, porque acho que vão na direção certa – incluir socialmente os setores
menos competitivos – embora saiba que o problema é muito maior e mais amplo.
Tenho apoiado todas as medidas que diminuam a pobreza ou favoreçam a mobilidade
social e todas as que combatam diretamente as discriminações raciais e a
propagação dos preconceitos raciais. Em curto prazo, funcionam as políticas de
ação afirmativa; em longo prazo, funcionam políticas que efetivamente
universalizem o acesso a bens e serviços.
(Antônio Sérgio Guimarães (Sociólogo da USP)
Entrevista concedida à Ação Educativa. Disponível em:
.
Acesso em: 30 jun. 2011.)
A divergência dessas duas posições reproduz,
atualmente, o antagonismo existente no debate sobre a questão racial na
sociologia brasileira, exemplificado pela oposição entre os pensamentos de
Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.
Identifique e explique, nos trechos reproduzidos, os
argumentos favoráveis e desfavoráveis à política de cotas para negros em
universidades, comparando-os com as visões teóricas de Gilberto Freyre e
Florestan Fernandes.
2.
(UEL Adaptado) Leia o texto a seguir.
Nosso
futebol mulato, com seus floreios artísticos cuja eficiência – menos na defesa
que no ataque – ficou demonstrada,é uma expressão de nossa formação social,
democrática como nenhuma e rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a
excessos de uniformização, de geometrização, de estandartização; a
totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade
pessoal.
(Adaptado
de FREYRE, G. apud FRANZINI, F. No campo das idéias: Gilberto Freyre e a
invenção da brasilidade futebolística. Buenos Ayres: Lecturas: Educación Física
y Deporte. Ano 5 nº 26 - Revista digital (http://www.efdeportes.com), 2000.)
Com
base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, explique:
a) O conceito de democracia racial de
Freyre.
b) Ele pode ser verificado na sociedade
brasileira atualmente?
c) O mulatismo.
3. (UEL 2013). Leia o
texto a seguir.
Estava na primeira
página: “O ESCANDALOSO ABANDONO DA BARRA”. Descompostura em regra, em Alfredo
Bastos, “deputado estadual eleito pelo povo de Ilhéus para defender os sagrados
interesses da região cacaueira” e cuja “eloquência franzina só se fazia ouvir
para celebrar os atos do governo, parlamentar do muito bem e do apoiado!”, um
compadre do coronel Ramiro, “inútil mediocridade, servilismo exemplar ao
cacique, ao manda-chuva”, culpando os políticos no poder pelo abandono da barra
de Ilhéus. “O maior e mais premente problema da região, que significará riqueza
e civilização ou atraso e miséria, o problema da barra de Ilhéus, ou seja, o
magno problema da exportação direta do cacau” que não existia para os que
haviam “em circunstâncias especiais, abocanhado os postos de mando”. E por aí
vinha, terminando numa evidente alusão a Mundinho, ao lembrar que, no entanto,
“homens de elevado sentimento cívico, estavam dispostos, ante o criminoso
desinteresse das autoridades municipais, a tomar o problema em suas mãos e a
resolvê-lo”.
(Adaptado de: AMADO, J.
Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. São Paulo: Record,
1978. p.136-137.)
Caio Prado Jr., em seu
livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, defendia a tese de
que a origem do atraso da nação brasileira está vinculada ao tipo de
colonização. O texto citado, do escritor Jorge Amado, é referente a uma notícia
do jornal de Ilhéus, em que a oposição da cidade contesta os líderes políticos
do local, sobre o descaso para com o porto da cidade.
a) Identifique e explique
o tipo de economia vivida à época pelo País (década de 1920), ilustrado no
texto.
b) Aponte três
características de relações de poder formadas no País que aparecem descritas no
trecho citado.
1SALA 2SALA 3SALA
GOMES, F, FERREIRA, R. A lógica da crueldade. In: Revista Nossa
História, São Paulo, Edição Especial nº 3, 2005, pág 14.
GOMES, F, FERREIRA, R. A lógica da crueldade. In: Revista Nossa
História, São Paulo, Edição Especial nº 3, 2005, pág 14.